quarta-feira, 25 de maio de 2016

A Velha rabugenta


Roger chega apressado e atrasado, para mais um fatigante dia de trabalho, com a nítida impressão de sequer ter descansado da labuta do dia anterior. Tira o casaco, pendura-o numa quina da prateleira, joga a mochila para o lado, e num golpe só, desdobra o jaleco, gira-o por cima de si e veste-o. Abotoa-o rapidamente, reza a oração do São Miguel Arcanjo, persigna-se com o sinal da Cruz e põe-se a entrar no setor de cinesioterapia, onde larga parte de seu sangue diariamente.

- Bom dia, senhora, está bem hoje?

- Se estivesse bem, não estaria aqui, concorda?! – é assim que abre-se-lhe a porteira do dia. Dezenas de seres galopantes de maior envergadura hão de dar-lhe a mesma resposta até o final das doze horas de trabalho.

- Discordo da senhora, Dona Hilda! – diz ele sorrindo - percebi que a senhora entrou aqui andando, sem andadores, sem cadeira de rodas, sem muletas, e de fato não percebi nenhum balão de oxigênio à tiracolo.

- Eu sei meu filho, me desculpa se fui rude, mas estou um pouco nervosa, pois estou esperando faz duas horas! Veja você que aviltante! Duas horas! – e dizendo isto, virou-se bruscamente, ainda eivada daquela atitude de contestação e raiva, certamente achando-se dona da razão.

- Mas... um instante, Dona Hilda, como a senhora poderia ter esperado duas horas para entrar na Fisioterapia, se nós só abrimos o setor às sete?

- Ora, por que eu cheguei às cinco horas da manhã! Acordei às três, saí de casa às quatro e cá estou às cinco.

Roger não sabia se a repreendia pelo fato de tão decrépita senhora estar a perambular pelas ruas escuras e desertas de Madureira, tão veladas pela bandidagem, ou se ria-se dela, dizendo-lhe que esta sanha atávica de chegar primeiro a bancos e consultórios médicos, mesmo à custa de sua segurança, era típico de idosos portadores de demência senil. A primeira repreensão parecia menos desrespeitosa e de maior proveito.

- Dona Hilda, onde estava com a cabeça? Não sabe que as ruas a esta hora da madrugada estão cheias de pivetes, doidos para arrumar um qualquer para comprar drogas? Roubam tudo: desde pequenos pertences até celulares! Ainda mais se virem uma senhora tão aparentemente frágil como a senhora. Vê se não faz mais isto, está bem?

- Olha meu filho – retorquiu a velha – eu sou dona do meu nariz, e você não é ninguém para dizer como, quando e por onde devo andar! Meus cabelos brancos são os meus conselheiros, e quando você estava na barriga da sua mãe, há meio século eu já vivia!

O Fisioterapeuta, que nada mais ansiava além de iniciar o tratamento, corou de vergonha, mas com o coração quase a sair-lhe do peito, inspirou bem fundo e disse à velha malcriada:

- Olha aqui, Dona Hilda, não são nem oito da manhã, e a senhora já se põe a dar suas rotineiras patadas?! Pensas que somos seus escravozinhos? Pensa que a tudo devemos abaixar a cabeça? Estou aqui para prestar-lhe um serviço, que pelo preço que me pagam, beira a caridade franciscana, e é assim que me tratas?

- Ah, garoto, largue esta palhaçada e comece seu trabalho, ande. Não tenho tempo para tuas lamúrias. Podias ter escolhido a jardinagem! Decerto, não te importunariam as plantas! Aqui, tratas de velhas! E velhas rabugentas! Já devias ter te acostumado.

Roger achou melhor silenciar, mais para não potencializar a raiva que sentia do que por respeito à rabugenta. Roger, definitivamente, não queria respeitar a rabugenta. Esperou pacientemente Dona Hilda, a passos de um cágado, subir à maca de tratamento, e quando ela enfim tinha subido, Roger pôs-lhe aos pés duas caneleiras: um quilo em cada perna. Imediatamente, a velha, que permanecera calada durante o esforço hercúleo da escalada na maca, dardeja novamente suas farpas:

- Mas você não vê que isto está pesado, seu tonto?!

- Mas pesos são para pesar, Dona Hilda, respondeu Roger tentando fazer troça;

- Mas... tire-me estes pesos imediatamente! Vim aqui para me tratar, e não para me cansar! Já sei:  trata-me assim porque fui rude com você quando cheguei, não é mesmo? Já não te pedi desculpas?

- Mas não estou te tratando de forma diferente do que me é devido, Dona Hilda! As caneleiras devem ter certo peso, para que seus músculos possam trabalhar, pois estão fraquinhos.

- Quero fazer sem pesos! – esbravejou a velha. Roger olha brevemente para o teto, aparentando tentar encontrar algum resquício de Deus naquele lugar; solta um profundo suspiro, e imediatamente retira as caneleiras de Dona Hilda, que olha altiva, de cima, com um ar de superioridade o fisioterapeuta fazer seu joguinho. Certamente deve pensar: “é meu este animalzinho!” Mas Roger está decidido a não se irritar, afinal de contas, não são nem oito horas da manhã. Apenas se questionava, como alguém consegue estar tão amarga e tão rabugenta ainda às horas iniciais do dia. Na cabeça de Roger, brotava a desconfiança de que este tipo de paciente saía de casa com o firme propósito de levá-lo à loucura. Tentara resistir a este pensamento há algum tempo, mas os episódios eram tão recorrentes, que ele não poderia se furtar a esta possibilidade. Para ele as velhinhas e os velhinhos estão deliberadamente dispostos a levá-lo à loucura. Então, Roger explica como será a execução do exercício de fortalecimento da musculatura das pernas, e pede que ela execute:

- Dona Hilda, são três séries de vinte repetições.. são três de vinte, está bem? – dito isto, Roger voltou-se para atender mais um paciente que chegara naquele momento, quando ouve a voz rouca e altiva da velha:

- Ei, psiu! O que são “três de vinte”?

-Mas eu acabei de explicar à senhora! São três séries de vinte repetições!

- E como eu vou saber que chegou ao vinte?

- Ora Dona Hilda, é só contar até vinte! Simplérrimo! Está entendido?

- Sim, está! Qualquer coisa eu te chamo!

E como que pedindo licença para retira-se da presença de tão Real paciente, Roger dirige-se a outro paciente, e recompondo-se do colóquio com Dona Hilda, respira fundo, reunindo em si toda a educação e elegância que herdara de seus pais, e que exigia o ofício que escolhera, e diz assaz cordial:

- Bom dia, como vai o senhor?


- Se estivesse bem não estaria aqui, não concorda?

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