quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Poema da Encarnação

Dormes envolto em pobreza
Escolhestes a miséria por berço
Fizeste-vos carne, Divino Infante
Para Salvar este mundo Tropeço
 
O que terias conosco que não fosse o amor?
Olhaste-nos complacente do seio trinitário
E num gesto de absoluta entrga
Lançaste-vos neste profundo vale de dor
 
Desde toda a eternidade
Foste um Altíssimo arquiteto
Precisavas de um lugar por aqui
Um lugar seguro, Puro e quieto
 
Criaste então temporária morada
Que findos os temos haveria de deixar
Era esta morada dulcíssima prisão
Por onde no mundo haveria de entrar
 
Quiseste, por amor, às cadeias atar-se
Fazendo-se por nós um amantíssimo prisioneiro
Para com a fraqueza humana ter semelhança
e como escravo, obedecer a quem criaste
 
Mistério excelso, um Rei submisso
Um Senhor fazendo-se escravo
Queria com isto aniquilar-vos na Cruz
Para ao Pai ser vítima de desagravo
 
Do sofrimento fizeste linguagem de amor
Para aos humildes poder ensinar
E trazer aos seus corações
O que só os grandes podiam alcançar
 
Se falasses de amor em poesia
Só o porta entenderia
Se em números do amor falasse
Talvez só o matemáico alcançasse
 
Sapientíssimo desígnio o fizeste escolher
À terrena miséria descer
E sendo Deus, descendo ao homem
Deixaste-nos a Vós ascender
 
Dorme, Divino Infante
Dorme, Vida e Luz
Dormirás, ainda no fim
No doce lenho da Cruz
 

O sino


Doce sino a bater no campanário
Pertinaz despertador da alma sonolenta
Ocasiões diversas és tu o mestre de cerimônias
Cadência cândida que avisa e acalenta

Nos batismos tu gritas lá do alto
Que mais um no Corpo Santo se enxerta
Que dali há de brotar novo cristão
que bradará sobre o messias às almas desertas

Nos casórios hás de ser o anfitrião
daqueles que contemplam a fusão dos corpos amantes
Anuncias festivo a chegada dos anjos

Celestes mensageiros do divino artífice
Empurram-te ao trabalho quando ameaças parar
E se paras, ressoa-te no fundo das almas

O que és tu na morte , ó sino?
És a triste trilha sonora da infausta passagem
Ecoas no além em aviso da alma que adentra
a saber se viverá ou morrerá eternamente;

Ao tic-tac das horas serves
Às impacientes. Madames faz-se grito
Ao medievo, eras a conta dos momentos vitais

Se avisas da Missa que se inicia
Ou se avisas do Trem que parte ;
Ainda que avises o cortejo fúnebre
Em verdade és o corneteiro das grandes jornadas


quarta-feira, 1 de junho de 2016

O reencontro

E sentaram-se um de frente para o outro. Há tempos que não exibiam olhares tão eufóricos. Os olhos de Jones, oscilavam com certa ansiedade, como que delineando os feições finas e doces do rosto de Rosana. Ela, por sua vez, demonstrava certa timidez eivada de malícia, ora com olhos cabisbaixos, ora levantando levemente um olhar desejoso do olhar de Jones. A luz da vela que estava sobre a mesa, roseava-lhes as faces, refletindo nos olhos de ambos, conferindo-lhes um tom ardente. Lenta e timidamente, as mãos se tocam. No toque suado das mãos sobre a mesa, manifestava-se exteriormente, aquilo que reinava interiormente: uma paixão irresistível, uma tórrida atração que queimava-lhes o interior, e que assemelhava-se-lhes o coração a uma fornalha. Suas almas estavam irrequietas, não suportavam mais o tormento de estarem presas nestes corpos mortais que insistiam em mantê-las afastadas. O Olhar de Jones parecia querer sequestrar Rosana, e lançá-la dentro de si, num doce cárcere privado, onde a acorrentaria ao coração e alimenta-la-ia com os mais ternos beijos; queria fazê-la perder-se no abismo de sua alma. Rosana permitia-se ser esquadrinhada e praticamente engolida pelo olhar sedento de Jones. Aquilo acariciava-lhe o ego e ardia ainda mais aquela chama que teimava em crepitar dentro de si, mesmo com os rumos que há muito o destino - e suas escolhas - lhes havia preparado, distanciando-os por longo período, tornando suas almas entes errantes no mundo obscuro e traiçoeiro das paixões. 

- Não pedirá nada? - perguntou Jones

Rosana arfava intensamente à primeira onde sonora da voz propositalmente grave de Jones que tocara seus ouvidos. Certamente que o desejo que estava por explodir de seu peito a fazia querer dizer que ela não queria pedir nada, além de que ele a tirasse daquele lugar e a levasse para casa, onde poderiam render-se aos deleites irrestritos do amor. Rosana não suportava mais a impossibilidade tocá-lo de forma mais íntima e reviver os ditosos dias em que ardiam de amor no leito conjugal! Se há algo, além de tudo mais, que Jones e Rosana tinham lancinantes saudades da época de casados, era das noites em que abandonavam-se ternamente um nos braços do outro e amavam-se com devoção. Na iminência de pedir um prato, o que de fato era objeto de desejo de Rosana, eram os lábios joviais e apolinicamente bem delineados de Jones. A boca de Jones atraía a de Rosana, mas havia algo, não  quase metafísico como o cheiro de paixão que pairava entre os dois, mas algo físico que como um juíz de pugilismo, punha-se alí, impávido e inerte: a mesa. Era imperioso que este entrave fosse removido e que seus corpos pudessem tocar-se. Mal terminaram de comer, Jones, sem deixar de fitá-la um segundo, talvez por medo de que um habilidoso ladrão de coração roubasse o seu, ergue o braço e mesmo sem ver o garçom, pede a conta. Depois de cumprir a regra cavalheiresca de pagar a conta, Jones levanta-se, deixando cair displicentemente o guardanapo que estava ao seu colo, dirige-se rapidamente para as costas de Rosana e antes que ela se levante, ele se precipita e puxa-lhe levemente a cadeira. Não é espantoso como o cavalheirismo - simples e discreto - é deveras funcional para fazer derreter-se ainda mais uma moça como Rosana?

Enquanto puxava a cadeira, não conseguia tirar os olhos dela, e continuava a olhá-la profundamente pelas costas, como que tentando atraí-la com o olhar, tão fixamente olhava. tendo levantado, ofereceu-lhe o braço, e de braços dados, saíram do restaurante, deixando pairar nos ares da noite carioca o aroma absolutamente irresistível e inebriante de um amor que depois de muito tempo, levantara velas novamente para fazê-los viajantes das águas mais profundas do oceano das carícias. O fogo do amor genuíno é inextinguível!

quarta-feira, 25 de maio de 2016

A Velha rabugenta


Roger chega apressado e atrasado, para mais um fatigante dia de trabalho, com a nítida impressão de sequer ter descansado da labuta do dia anterior. Tira o casaco, pendura-o numa quina da prateleira, joga a mochila para o lado, e num golpe só, desdobra o jaleco, gira-o por cima de si e veste-o. Abotoa-o rapidamente, reza a oração do São Miguel Arcanjo, persigna-se com o sinal da Cruz e põe-se a entrar no setor de cinesioterapia, onde larga parte de seu sangue diariamente.

- Bom dia, senhora, está bem hoje?

- Se estivesse bem, não estaria aqui, concorda?! – é assim que abre-se-lhe a porteira do dia. Dezenas de seres galopantes de maior envergadura hão de dar-lhe a mesma resposta até o final das doze horas de trabalho.

- Discordo da senhora, Dona Hilda! – diz ele sorrindo - percebi que a senhora entrou aqui andando, sem andadores, sem cadeira de rodas, sem muletas, e de fato não percebi nenhum balão de oxigênio à tiracolo.

- Eu sei meu filho, me desculpa se fui rude, mas estou um pouco nervosa, pois estou esperando faz duas horas! Veja você que aviltante! Duas horas! – e dizendo isto, virou-se bruscamente, ainda eivada daquela atitude de contestação e raiva, certamente achando-se dona da razão.

- Mas... um instante, Dona Hilda, como a senhora poderia ter esperado duas horas para entrar na Fisioterapia, se nós só abrimos o setor às sete?

- Ora, por que eu cheguei às cinco horas da manhã! Acordei às três, saí de casa às quatro e cá estou às cinco.

Roger não sabia se a repreendia pelo fato de tão decrépita senhora estar a perambular pelas ruas escuras e desertas de Madureira, tão veladas pela bandidagem, ou se ria-se dela, dizendo-lhe que esta sanha atávica de chegar primeiro a bancos e consultórios médicos, mesmo à custa de sua segurança, era típico de idosos portadores de demência senil. A primeira repreensão parecia menos desrespeitosa e de maior proveito.

- Dona Hilda, onde estava com a cabeça? Não sabe que as ruas a esta hora da madrugada estão cheias de pivetes, doidos para arrumar um qualquer para comprar drogas? Roubam tudo: desde pequenos pertences até celulares! Ainda mais se virem uma senhora tão aparentemente frágil como a senhora. Vê se não faz mais isto, está bem?

- Olha meu filho – retorquiu a velha – eu sou dona do meu nariz, e você não é ninguém para dizer como, quando e por onde devo andar! Meus cabelos brancos são os meus conselheiros, e quando você estava na barriga da sua mãe, há meio século eu já vivia!

O Fisioterapeuta, que nada mais ansiava além de iniciar o tratamento, corou de vergonha, mas com o coração quase a sair-lhe do peito, inspirou bem fundo e disse à velha malcriada:

- Olha aqui, Dona Hilda, não são nem oito da manhã, e a senhora já se põe a dar suas rotineiras patadas?! Pensas que somos seus escravozinhos? Pensa que a tudo devemos abaixar a cabeça? Estou aqui para prestar-lhe um serviço, que pelo preço que me pagam, beira a caridade franciscana, e é assim que me tratas?

- Ah, garoto, largue esta palhaçada e comece seu trabalho, ande. Não tenho tempo para tuas lamúrias. Podias ter escolhido a jardinagem! Decerto, não te importunariam as plantas! Aqui, tratas de velhas! E velhas rabugentas! Já devias ter te acostumado.

Roger achou melhor silenciar, mais para não potencializar a raiva que sentia do que por respeito à rabugenta. Roger, definitivamente, não queria respeitar a rabugenta. Esperou pacientemente Dona Hilda, a passos de um cágado, subir à maca de tratamento, e quando ela enfim tinha subido, Roger pôs-lhe aos pés duas caneleiras: um quilo em cada perna. Imediatamente, a velha, que permanecera calada durante o esforço hercúleo da escalada na maca, dardeja novamente suas farpas:

- Mas você não vê que isto está pesado, seu tonto?!

- Mas pesos são para pesar, Dona Hilda, respondeu Roger tentando fazer troça;

- Mas... tire-me estes pesos imediatamente! Vim aqui para me tratar, e não para me cansar! Já sei:  trata-me assim porque fui rude com você quando cheguei, não é mesmo? Já não te pedi desculpas?

- Mas não estou te tratando de forma diferente do que me é devido, Dona Hilda! As caneleiras devem ter certo peso, para que seus músculos possam trabalhar, pois estão fraquinhos.

- Quero fazer sem pesos! – esbravejou a velha. Roger olha brevemente para o teto, aparentando tentar encontrar algum resquício de Deus naquele lugar; solta um profundo suspiro, e imediatamente retira as caneleiras de Dona Hilda, que olha altiva, de cima, com um ar de superioridade o fisioterapeuta fazer seu joguinho. Certamente deve pensar: “é meu este animalzinho!” Mas Roger está decidido a não se irritar, afinal de contas, não são nem oito horas da manhã. Apenas se questionava, como alguém consegue estar tão amarga e tão rabugenta ainda às horas iniciais do dia. Na cabeça de Roger, brotava a desconfiança de que este tipo de paciente saía de casa com o firme propósito de levá-lo à loucura. Tentara resistir a este pensamento há algum tempo, mas os episódios eram tão recorrentes, que ele não poderia se furtar a esta possibilidade. Para ele as velhinhas e os velhinhos estão deliberadamente dispostos a levá-lo à loucura. Então, Roger explica como será a execução do exercício de fortalecimento da musculatura das pernas, e pede que ela execute:

- Dona Hilda, são três séries de vinte repetições.. são três de vinte, está bem? – dito isto, Roger voltou-se para atender mais um paciente que chegara naquele momento, quando ouve a voz rouca e altiva da velha:

- Ei, psiu! O que são “três de vinte”?

-Mas eu acabei de explicar à senhora! São três séries de vinte repetições!

- E como eu vou saber que chegou ao vinte?

- Ora Dona Hilda, é só contar até vinte! Simplérrimo! Está entendido?

- Sim, está! Qualquer coisa eu te chamo!

E como que pedindo licença para retira-se da presença de tão Real paciente, Roger dirige-se a outro paciente, e recompondo-se do colóquio com Dona Hilda, respira fundo, reunindo em si toda a educação e elegância que herdara de seus pais, e que exigia o ofício que escolhera, e diz assaz cordial:

- Bom dia, como vai o senhor?


- Se estivesse bem não estaria aqui, não concorda?